Sexta-feira, 27 de Fevereiro de 2015
publicado por JN em 27/2/15

27.2.15 a.jpegEu venho a sair da garagem, com um cesto de lenha. O Poeira desce a Fonte Faneca, com um molho de plantio na mão – couve-todo-o-ano, se o diviso bem. Trocamos bons-dias e considerações sobre o estado do tempo. Afinal o Inverno sempre chegou, já fazia falta e etecetera e tal.

Viro-me para fechar a porta. E, então, sou como que apanhado por um cone de aspiração. Dou uma volta sobre mim próprio. Ouço um zumbido.

Levanto os olhos para o Poeira – está do outro lado da estrada, espalmado contra a esquina da Mercês, a couve dispersa pelo chão. Parece palpar-se, a conferir se vive. Lá em cima, desaparecendo ao cimo da lomba, levanta orvalho um desses carrinhos em que os garotos com carta de condução se fazem locomover.

Tem um motor ronronante e cores flamejantes a toda a volta, a não ser na metade da frente do capô, cinzenta das reparações em curso. Faltam-lhe o pára-choques traseiro, os quatro pratos e, provavelmente, o óleo de travões. Quase podemos ouvir o jovem homem: “Ah ah ah, tiveram medo!”

Trocamos um olhar de pena. Conhecemos a história daquele miúdo mesmo sem conhecermos o seu nome. Todos os dias o vemos passar, para cima e para baixo: ele como outros igualmente desesperados, tomados pelo ódio, a caminho de lado nenhum.

Sabemos o seu destino próximo, o dele como o do seu carrinho. Tanto quanto podemos prever, podem não passar da curva seguinte. De resto, não chega a ser o gangster que gostaria: é apenas um pobre assassino. Teve como único sonho de infância possuir um automóvel e, agora, precisa de uma audiência. Pode suportar tudo, menos o silêncio.

Sou sensível a isso. No dia em que faça mal a alguém aqui à volta, pessoa ou animal, senciente ou invertebrado, dar-lhe-ei de mão aberta, que sempre faz mais barulho.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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publicado por JN em 27/2/15

27.2.15.JPGNo fim-de-semana comprei uma mangueira nova. Uma mangueira com destorcedor, braçadeiras de qualidade e uma pistola em condições pode mudar a vida de um homem.

Desatei logo no sábado a lavar o pátio e, no domingo de manhã, já me apetecia lavá-lo outra vez. Mesmo agora, que estou aqui a escrever, penso em como seria maravilhoso estar lá fora, a gozar o jorro vigoroso da minha nova mangueira, com o Melville tentando apanhar a água e os melros olhando-nos desconfiados a partir dos ramos do castanheiro.

Toda a vida tive caixas de ferramentas. Sempre me orgulhei delas. Abria-as e punha-me a olhar para aqueles objectos, como se fizessem de mim um super-herói. Se havia algum parafuso para apertar, sacava do jogo de chaves de fendas e demorava-me a escolher. Havendo um vizinho em apuros, atravessava o corredor e abria a caixa.

Manuseá-la era metade do prazer. Às vezes, o prazer todo. Só quando me mudei para o campo percebi que as caixas de ferramentas estão para o homem sem o que fazer com elas como as revistas de viagens estão para o viajante sem tempo, dinheiro ou até vontade de viajar: são um substituto.

Hoje não tenho caixa de ferramentas. Tenho ferramentas por todo o lado. Quando cheguei, fiz um expositor na garagem e pendurei-as todas direitinhas. Agora andam pelas gavetas, dispersas pela despensa e pelo quarto de hóspedes, em recantos do jardim. Servem-me a toda a hora. Servem-me todos os dias, várias vezes. Depois ficam à espera.

As minhas ferramentas deixaram de ser um psiquiatra para passarem a ser aquilo que devem ser: ferramentas. Tirando esta semana, que foram anjo vingador: como melhorou a minha vida, com uma mangueira nova.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 2015
publicado por JN em 26/2/15

26.2.15.jpegConheço muitos lugares no mundo com orgulho nas suas tradições. Nenhum como este. Na Terceira cultua-se o Divino, nas oito semanas que antecedem o Pentecostes, com a mesma devoção com que se cultuou nos últimos 500 anos. As touradas à corda continuam a reunir milhares de pessoas em centenas de exibições concentradas em cinco meses e meio. As Sanjoaninas de Angra só encontram rival, em todo os Açores, nas Festas da Praia, do outro lado da ilha.

A gastronomia e os ofícios, a música e o folclore – não fica nada por preservar, quase sempre de um modo muito próprio. Todas as datas cristãs são festejadas e todas as datas pagãs, podendo sê-lo, o são também. E, entre estas, o Carnaval é de longe a mais exuberante, começando a celebrar-se quatro semanas antes e culminando nas danças e bailhinhos, que configuram uma tradição única no mundo.

Apesar disso, chega-se a esta altura e os supermercados passam samba. Uma pessoa estica a mão para a prateleira do pão de milho, toda bucólica, e parece que a escola do Salgueiro vem a dançar atrás dela, pronta a atropelá-la. Abre o armário das pizas congeladas, a ver se ninguém repara no seu crime, e aparece-lhe por cima uma sambista aos berros: “Num adianta você tá disfarçando, que todo o mundo vai sabê, iê iê iê.”

A história da ruralidade é hoje a história de uma tensão entre o que nela existe de autêntico e o que de fora vem de artificial. Muitas vezes o artificial já vem de dentro, num esforço de integração. Outras o autêntico já vem de fora, como um suborno. No fim, resta-nos o exotismo possível. A realidade não passa de um sucedâneo, e a estética da bruma já aí anda há anos para prová-lo.

O samba deixa-me mesmo deprimido.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Quarta-feira, 25 de Fevereiro de 2015
publicado por JN em 25/2/15

IMG_2837.JPGO Miguel está todo contente: quatro anos depois de se casar, vai começar a fazer a sua casa. No fundo, não sabe como aguentou tanto.

Disse-mo um dia destes, quando nos cruzámos na pastelaria. “Finalmente!” Dei-lhe os parabéns e, além do café, pedi uma covilhete de leite. O açúcar conforta-me.

Na verdade, não somos assim tão diferentes. Os meus vizinhos continuam a construir casas novas quando se casam porque querem revestir-se de uma sensação de urbanidade. Eu gosto de viver em casas velhas, rústicas e gastas, porque quero – também quero – revestir-me de uma sensação de ruralidade.

Em ambos os casos, neste lugar onde vivemos como no século XXI, há um grau de ilusão.

Poderiam, evidentemente, invocar-se a economia, a racionalidade, a própria paisagem. Há demasiadas casas livres na ilha – é estúpido construir mais. Porque custa caro e porque, na maior parte das vezes, tem ficado feio.

Horrível.

Não argumentarei com mais do que a memória. Às vezes ponho-me no meu jardim, olho para as escadas e imagino a minha mãe ali sentada, aos sete ou oito anos, a debulhar ervilhas. Vejo o castanheiro do cerrado e penso no cabo de aço que o meu avô inventou para fazer descer os molhes de lenha da mata. Aproximo-me do curral do porco e encontro o meu, pai acabado de chegar à terra, um garoto ainda, melhorando-o para mostrar os dotes ao sogro.

Eu não quero começar do zero. Nunca quis. Começar do zero haveria de custar-me não só memórias, mas medos e culpas. Nem sequer sei como se pode viver sem o medo e a culpa.

Mas sei que se pode. Vejo-o todos os dias. E, no ponto da vida em que estou, já não aplaudo nem deploro. Enquanto houver jazz e amendoins, tudo o mais conservará algum grau de irrelevância.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Terça-feira, 24 de Fevereiro de 2015
publicado por JN em 24/2/15

24.2.15.JPGAqui chamam-se apelidos, e eu ponho-me com a minha mãe a fazer listas. Há os antropomórficos (Barbado, Carrapicho, Fininho, Fuso, Rasteiro) e os que, não sendo zoomórficos, são pelo menos zoológicos (Besouro, Choco, Formiga, Gatinho, Porca Amarela). Uns podiam ser apelidos mesmo, nomes de família a sério (Branco, Camurça, Galão, Poeira), e outros só se o funcionário do registo estivesse com os copos (Bambela, Bilhoco, Sobica, Xairela, Xidoca, Zabela, Zaranza).

Alguns hão-de vir da profissão de um pai ou de um avô (Cabreiro, Bispo) e outros dos vegetais cultivados lá em casa (Batatinha, Sarralha). Nuns casos a origem é a geografia (Das Bicas, Da Serra, Varedas) e noutros ainda a dinastia, tantas vezes matriarcal (Da Aninhas, Das Bernardas).

Há os que falam de singularidades de expressão (Jadeu), de ausência de expressão (Mudo) e mesmo de excesso de expressão (Ligeiro).

Há diminutivos (Cachinha, Casquinha, Estacinho, Estevinho, Zanguinha) e há pronomes possessivos (Nosso). Há, como seria de esperar, aqueles que lembram idiossincrasias infelizes (Cara Suja, Chorica, Valhaquinho) e até aqueles cujo momento da concepção será melhor nem lembrar (Peidão, Cagão).

São as alcunhas da Terra Chã. Podia escrever-se a biografia de um lugar a partir apenas das suas alcunhas – um romance inteiro só imaginando as origens delas.

Falham-me as grafias de várias. Não sei se Sobica é com “o” ou com “u”. E Besouro, dizendo-se “Bisoiro”, talvez devesse escrever-se Bisoiro também.

De qualquer modo, chamar Rasteiro a um homem não é a mesma coisa que chamar-lhe Anão. E a profusão de diminutivos faz-me crer que sempre houve nisto uma certa ternura.

Sobre o tal bispo, não sei nada, mas vou tentar saber. Por mim, ainda não tenho apelido. Se pudesse escolher, escolhia Nosso.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Segunda-feira, 23 de Fevereiro de 2015
publicado por JN em 23/2/15

23.2.15.jpegOntem à noite pareceu-me ouvir um cagarro. Foi impressão: a não ser que o clima tenha dado uma cambalhota demasiado grande, ainda será preciso esperar três ou quatro semanas. Bem basta este Inverno com que temos sido ungidos. O pobre desconfia.

E, no entanto, em breve aí estarão eles de novo, chorando como crianças possuídas. Trarão o mesmo parceiro de sempre, prometida que foi a saúde e a doença, e procriarão no mesmo ninho do ano passado.

Em Outubro hão-de partir outra vez para a jangada do costume, junto aos vizinhos habituais, na mesma coordenada dos mares da África do Sul ou do Uruguai. Na Primavera voarão de volta. Pelo meio, esperarão as crias, deixadas aqui à sua mercê, para que provem os merecimentos.

Uma cria de cagarro tem dez por cento de hipóteses de sobrevivência, mas lutará por ela até ao limite das suas forças. O mais provável é que não seja capaz de voar – que não entenda as estrelas, que as confunda com as casas e os carros. Talvez se estatele contra um poste eléctrico. Talvez seja apanhada pelas hélices de um avião.

Talvez seja recolhida por um homem bom, que a colocará dentro de uma caixa e, no dia seguinte, a libertará junto ao mar.

Mesmo assim, ainda terá de vencer a suprema provação: encontrar os pais. Durante dias, voará ao sol e à chuva, com ventos favoráveis, contrários e cruzados – com frio, com calor e já sem forças. Se chegar, será forçada a ficar dez anos quieta na jangada. O prémio será começar o seu próprio vaivém.

O que nos distingue dos cagarros é tudo aquilo que construímos de humano. O que nos aproxima é tudo aquilo que conservámos de social. Os cagarros vivem muitos anos, às vezes mais do que as pessoas. Cada um faça a sua própria matemática. Haverá sempre o que aprender eles.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Sexta-feira, 20 de Fevereiro de 2015
publicado por JN em 20/2/15

fotografia.JPGNo fim, o meu pai lavava a cara. Isto aos fins-de-semana, quando tinha tempo de andar pelo quintal. Chegava ao pé da torneira, dobrava-se à frente dela e, antes de entrar em casa, lavava a cara.

Eu gostava de ver o meu pai lavar a cara.

O meu pai não é açoriano. Começou aos onze anos a apascentar cabras nas serras de Porto de Mós e tudo o que conseguiu na vida, conseguiu-o na idade adulta, em resultado apenas do seu desejo.

Lembro-me de vê-lo sair para os gratificados, à meia-noite, tremendo de frio e de sono. Lembro-me dos chocolates espanhóis que nos trazia de Lisboa, todo contente, quando tinha de viajar para alguma acção de formação. Lembro-me de visitá-lo em Torres Novas, já muito cansado e só, quando teve de ficar meses fora para um último curso.

Nunca desistiu. Tudo o que em mim haja de irredutibilidade vem dele, apesar de eu ter demorado tanto a descobri-lo. Mas, quando acabava uma jornada pelo quintal, longe do trabalho na esquadra, dos papéis e das chatices, havia um momento em que se libertava.

Voltava a ser um pastor de Porto de Mós. Voltava a andar nas obras em Minde. Voltava a ser pára-quedista em Mueda. Pousava a podoa e o alvião. Batia as botas uma na outra. Chegava-se junto da torneira do quintal, abria-a a correr e lavava a cara.

E eu ficava ali, a vê-lo lavar a cara, achando que nunca pudera haver nada mais asseado do que aquilo.

A água jorrava-lhe sobre os caracóis. A certa altura, o seu rosto e os seus ombros ficavam muito vermelhos. O sabão azul e branco fazia uma espuma baça. E ele lavava a cara com tempo e silêncio, sob a água fria e abundante, como num ritual de purificação.

Pode-se dizer tanto sobre um homem a partir do modo como ele lava a cara ao fim de um dia de trabalho. Foi aí que descobri o meu pai.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Quinta-feira, 19 de Fevereiro de 2015
publicado por JN em 19/2/15

19.2.15.jpeg– Qual é o prato do dia de hoje, Zé?

– Prato do dia?! Home’, eu não estou na falência. Pratos a quatro euros?! Vocês fazem ratedógues em casa e amanham-se! E fazem sopa, c------!

– Já estou um bocado farto de alcatra de peixe. E isso deve ser congelado.

– Home’, vai p’rá p--- que te pariu! Nunca congelei uma alcatra na minha vida. Ponho-as é no fresco. Como é que querias? Eu cozinho de manhã para servir ao meio-dia e cozinho à tarde para servir à noite.

– E ainda é a receita que roubaste ao Preguiça?

– F----se! Hás-de ir chatear mas é p’rá p----. Esta receita é minha. Há 27 anos.

– A ASAE sabe que te portas assim com os clientes?

– Ninguém me vem aqui chatear. Está tudo limpinho. E, se vierem, mando-os logo p’ró c------. “Não queres beber, não bebas.”

– …

– Eu estou a falar um bocado mal, mas é porque estou tirar os dentes. Estou a pôr uns implantes, por isso é que estou a falar mal.

– Para isto, mais valia teres ficado na América.

– Na altura, tinha que vir. O meu sogro era diabético e tiveram que lhe cortar as perninhas.

– ...

– Agora já não gozas?

– E isso do Sporting? Está mau, não?

– Não me fales do Sporting. Não durmo há dez anos.

– Dez anos?!

– É uns pedacinhos que durmo de noite, e mais nada.

– Ainda és sócio?

– Já não pago as quotas.

– Pois claro.

– Estou a falar a sério contigo, c------.

– Bom, onde é que me aconselhas ir comer hoje?

– Vai comer onde quiseres. Mas já sabes que não se come em mais banda nenhuma da ilha como aqui. Não tem aquele paladar.

O Zé também é conhecido por O Careca, ou mesmo O Cabrinha. Protege a sua receita como ninguém, e eu também nunca lha peço. Não quereria ofendê-lo.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Quarta-feira, 18 de Fevereiro de 2015
publicado por JN em 18/2/15

18.2.15.JPGDe vez em quando lembramo-nos dos primeiros tempos. Acabávamos a jornada e eu sentava-me na cozinha, no mesmo lugar do meu avô, a ler o Diário Insular.

Às vezes fazia recortes. Indignava-me. Outras limitava-me a ver os mortos e os anúncios das touradas.

Tinha a impressão de que já não lia jornais há muito tempo, apesar de os ler todos os dias.

A Catarina cozinhava. Inventava pratos novos. Acabávamos de comer e punha-se a fazer costura. Comprava tecidos, fitas, galões. Inventou cortinas e bases para chávenas. Decorava garrafinhas com rendas que diziam “Licor de Mel” e “Licor de Amora”, e depois eu tinha de arranjar licores de mel e de amora para as encher.

Eram os nomes que lhe tinham soado melhor.

Trazíamos muitos planos e deixámos uma série deles por concretizar. Queríamos ir à praia todos os fins de tarde, os dois. Queríamos entrar numa marcha das Sanjoaninas. Queríamos ir a pé à Serreta, na peregrinação da Senhora dos Milagres.

Não fizemos nada disso. E também nunca mais conseguimos pôr-nos a ler jornais e a costurar na cozinha.

Mas fizemos algumas coisas. E, pelo meio, aconteceu vida. Escrevemos crónicas e livros, fizemos traduções e conteúdos. Ganhámos amigos. Demos uma mão em associações culturais e movimentos de cidadania.

Há dias em que ainda acho que trabalho de mais. Não: todos os dias acho que trabalho de mais. Mais até do que nos tempos de Lisboa – muito mais. Mas não tenho uma insónia há dois anos e meio. A minha mãe diz que até os papos nos olhos perdi, embora possa ser bondade dela.

Os psicólogos nem sempre têm razão.

Viemos por quatro ou cinco anos e, agora, quatro ou cinco anos não chegam. Eu podia dizer que isso surpreendeu muita gente. Mas a verdade é que nos surpreendeu a nós.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Terça-feira, 17 de Fevereiro de 2015
publicado por JN em 17/2/15

17.2.15.jpegAmanhã vamos ao Ti Choa. Sobre a Serreta ter-se-á abatido um nevoeiro espesso, e à silhueta da Graciosa, para além da neblina e da noite, só a poderemos adivinhar.

Lá dentro, cheirará a chicharro seco e a pão de casa.

Durante cinco minutos, a Delisa contará da ementa. Será simpática e doce, e em nenhum momento tentará parecer mais profissional do que é. Chega-lhe a boa educação do campo e sentir-se amada por tanta gente.

Para a mesa virão primeiro o curtume, o queijo de peso e a massa de malagueta. Uma das mulheres talvez peça filetes de abrótea. Outra talvez se furte ao vinho, caso em que saberemos que está grávida.

Depois as coisas começarão a precipitar-se. Virão as morcelas, as linguiças e o pão de milho. Virão os torresmos e o molho de fígado, com as suas rodelinhas de inhame à volta.

Virá a alcatra de feijão.

A alcatra de feijão do Ti Choa é o melhor prato de feijão português, e um dia eu ponho as minhas botas em cima da mesa de um desses chefs da televisão e digo exactamente isso.

Comeremos doces – malassadas, que é Carnaval, ou então filhoses de forno –, e beberemos licor de amora. A certa altura talvez se levante uma rapariga para cantar, e não será o melhor momento da noite.

De qualquer modo, se for mesmo depois do licor, até o rapaz do teclado nos parecerá o Rubinstein. E da última vez levantou-se um senhor para cantar o Frank Sinatra, e cantou maviosamente, e afinal era o António Pinto Basto, e estivemos ali a falar do Sporting.

Voltaremos tarde, não tão tarde assim, e talvez a Delisa nos deixe fumar um cigarro, se não estiver ninguém. As mulheres conduzirão os carros, menos a minha, e cheirará a enxofre.

E a metafísica.

Amanhã vamos ao Ti Choa e eu escrevo a crónica já hoje porque nunca sei se me vou querer vir embora.

* Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira, e a cidade de Lisboa. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011) e “Os Sítios Sem Resposta” (romance, 2012). Está traduzido, editado e/ou representado em antologias em países como Inglaterra, Polónia, Brasil, Espanha e Itália. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica, ao diário e à crítica, que desenvolve a par da escrita de ficção. (saber mais)
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