Terça-feira, 7 de Abril de 2015
publicado por JN em 7/4/15

IMG_5961.JPGDois dias antes de se fazer um bolo de massa sovada, já se está a fazê-lo. Numa tigela, deitam-se 500 gramas de farinha de milho, com uma saqueta de fermento misturada. Faz-se uma cova, adiciona-se uma colher de sal e vai-se acrescentando água a ferver, enquanto se mexe com a colher de pau. Deixa-se arrefecer, amassa-se com as mãos até ficar mole (mas não ralo) e tapa-se, guardando 48 horas.

Só então começa a confecção principal. Noutra tigela, batem-se seis ovos com seis colheres de açúcar. Acrescentam-se mais seis de farinha de trigo e outras tantas do primeiro preparado e torna-se a guardar por mais cinco horas.

Entretanto, numa terceira tigela partem-se duas dúzias de ovos, juntam-se dois quilos de açúcar e bate-se tudo até ficar ligado e fofo. E num alguidar peneiram-se seis quilos de farinha de trigo, faz-se outra cova e deita-se nova colher de sal, mais o segundo preparado e os ovos batidos com o açúcar.

Mistura-se tudo com as mãos, enquanto à parte já se vai aquecendo um litro de leite, com meio quilo de manteiga e três colheres de banha. Começa-se a juntar a solução à massa, devagar, e quando ficar tudo macio sova-se com ardor, tapando o alguidar para levedar mais cinco horas ainda.

O resto é o habitual: toalha polvilhada, brindeiras moldadas, duas horas de tendal, uma de forno. Se for Páscoa, põe-se um ovo no meio e unta-se com gemas.

Sempre que como massa sovada penso nas mulheres que a fizeram durante séculos, milhares de vezes, até aperfeiçoarem a receita.

Tenho uma hierarquia das melhores da ilha, mas há dias provei uma nova, maravilhosa. Mandei avisar o padeiro de que passasse a apitar aqui também, no giro de quarta-feira, e ontem passei a tarde a tamborilar. Afinal, o homem só vem de 15 em 15 dias.

Diário de Notícias, Março 2015

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Segunda-feira, 6 de Abril de 2015
publicado por JN em 6/4/15

fotografia.JPGEste fim-de-semana encomendei duas olaias. Estou só à espera de que, lá no viveiro onde me esperam, botem a primeira flor. Com a minha sorte, saíam-me ambas brancas, como aconteceu com a magnólia.

Ainda bem que a plantei a um canto.

Às vezes lembro-me dos primeiros dias deste jardim. Trabalhava para a Grande Reportagem e volta e meia convencia o director do quão importante, imperativo e inescapável era vir às ilhas escrever sobre não sei o quê. Os fotógrafos acabavam sempre de botas de cano. O Jordi Burch plantou-me a linha de abrigos sozinho, rindo.

Paguei tudo em cerveja fresca.

Hoje, sou penalizado pela falta de planeamento. Demorei muito a plantar um plátano e agora tenho de esperar que cresça. Abati uma tipoana para, cinco ou seis anos depois, plantar outra quase no mesmo lugar.

Entretanto, não sei o que fazer aos dois ficus que se desenquadraram, e também não tenho a certeza de que o araçaleiro esteja no sítio certo. Ou a pitangueira. Ou a macadâmia.

Mas sei que duas feijoas vão dar razão a Darwin e ceder lugar a duas olaias. Ao fim de dois anos e meio, já ultrapassei o número de vezes que um homem consegue circular entre as quintas de São Carlos sem ir comprar duas olaias.

São lindas, as olaias. Diz-se que foi numa que Judas se enforcou, o que só demonstra que tinha redenção. E também são um pouco de Lisboa, aqui connosco. Como é o jacarandá que pus à entrada.

Só que nenhum jacarandá, nesta humidade, faz aquele mosqueado roxo como os da D. Carlos I. Já as olaias crescem como bonsais em ponto grande e, por esta altura, cobrem-se de um naperon rosa-choque.

O meu consumismo é este, hoje em dia. E é bom. Tenho sítio para me enforcar e ainda aprendo que as olaias não são apenas uma estação de metro.

Diário de Notícias, Março 2015

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Sexta-feira, 13 de Março de 2015
publicado por JN em 13/3/15

14.3.15.jpeg“Gosto destas novas crónicas do campo”, diz-me o Arlindo. “São as crónicas de um homem feliz.”

Ele sabe do que fala, em princípio. Acompanhámo-nos durante anos, um a tentar tornar-se escritor e o outro a tentar tornar-se cineasta, pelo que sabemos do que falamos quando falamos um do outro. O extraordinário foi que aquela palavra, ao contrário do que me teria acontecido noutra altura da vida, não me ofendeu.

«Feliz.» Repito-a na minha cabeça. Um homem feliz. Ser feliz. Sermos felizes.

Não mete estilo nenhum. E, no entanto, soa-me bem.

A felicidade, naturalmente, não tem história. O que tem história é tudo aquilo que pode destruí-la. Um segundo basta. Não é por se estar no campo, ou no meio do mar, ou simplesmente longe que se está a salvo. E, além disso, continua a haver, no nosso caso, demasiados dias em que não conseguimos tempo para nos chegarmos para trás e cheirar as rosas.

A própria vida é uma manta curta. estou certo de que metade dos meus vizinhos aceitaria de bom grado essa aposta: felizes é que não são. Como poderiam sê-lo, se passam a vida a trabalhar?

Disso se trata, porém. Chega de ter medo das palavras (note-se que as contorno ainda). Se o devo ao espaço ou apenas ao tempo, não sei. Quanto a isso, cada vez sei menos. Talvez tudo se resuma a algo bem mais prosaico do que aquilo que faz sonhar quem sonhe com a vida no campo: ter passado os 40 e aprendido a dançar.

Mas o facto é que, quando à noite me sento com a Catarina, a jantar e a discutir a crónica seguinte, porque as escrevo à noite (e por isso me saem às vezes demasiado íntimas, como esta), torno a sabê-lo. Dizem-mo elas, sobretudo, e só por isso já valeu a pena escrevê-las: para saber que sou feliz.

Sempre fui, provavelmente.

Diário de Notícias, Março 2015

* Estas crónicas interrompem-se nas próximas duas semanas, para férias, e regressam a 30 de Março

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Quinta-feira, 12 de Março de 2015
publicado por JN em 12/3/15

12.3.15.jpegA princípio, comprava-os ao quarteirão. Queria repetir os gestos dos meus antepassados, e os meus antepassados compravam-nos ao quarteirão.
Desisti. No primeiro ano produzi tanto tomate que ainda hoje tenho sacos cheios no fundo da arca. Os amigos vinham cá almoçar e, quando me viam desviá-los para a horta, a meio das despedidas, uniam as mãos:
– Ai, Joel, mais tomate não, pelas alminhas do Purgatório, especialmente as mais abandonadas...
Portanto, compro sete ou oito pés e chega. Mas a rotina é a mesma. Planto-os com um metro de distância uns dos outros, para poder circular, e certifico-me de que a terra fica humedecida. Durante alguns dias, preocupo-me sobretudo com isso: com a água. Ao fim de duas semanas, faço as primeiras escoras de caules e ramos, e então as coisas começam a acontecer cada vez mais depressa.
Todos os dias um tomateiro tem alguma necessidade. É preciso sachá-lo, para não o deixar contaminar por outras plantas, e é preciso capá-lo de filhos e netos, de modo a manter apenas as hastes adequadas à produção. É preciso ir actualizando os nós que o prendem aos esteios e é preciso desbastá-lo por baixo, por causa do oídio. É preciso regá-lo, sulfatá-lo e rodeá-lo de veneno dos caracóis – e é preciso fazer isso tudo quando estiver seco, caso contrário amuará, até ficar preto e, por fim, morrer.
Isto ensinou-mo o meu pai, produtor garboso, em jeito de alma do negócio: em tomateiro húmido não se mexe. Com orvalho nunca, de manhã só com cuidado.
Nesse dia, inventámos uma anedota: o tomateiro é mulher, embezerra com facilidade e nem se lhe pode tocar. Nunca a partilhámos com elas. Sabemos bem que o tomateiro, na verdade, é homem. Como os homens da nossa família: dependentes, humorosos quanto baste e infinitamente frágeis.
Que dê frutos tão bonitos não passa de um paradoxo redentor.

Diário de Notícias, Março 2015

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Terça-feira, 10 de Março de 2015
publicado por JN em 10/3/15

11.3.15.jpegEste ano não vou usar o Excel para desenhar a horta. Já não se poderão lamber os carreiros, e é provável que também não tire tantas fotos.

Apesar disso, ando em planos há meses. Ainda há dias pedi ao Chico para me desbastar a erva à volta das malagueteiras. No início de Abril, puxo da gadanha.

Uma gadanha, aqui, é aquilo a que em Lisboa se chama ancinho. Um género dele. A outro género chamamos garfo e a outro ainda vassoura. Ancinho é só aquele comum, como um pente. Ninguém o usa.

À gadanha de Lisboa, chamamos alfange. A morte, nos Açores, ataca de alfange.

Este ano não haverá rúcula, porque eu não gosto, nem nenhum tipo de couve, que é coisa que cresce bem mas come-se pouco. Talvez haja algum repolho, mas não do roxo, que também só serve para as fotografias.

Haverá feijão verde, nabo e alface, superestrelas dos últimos dois anos, e talvez algum milho doce, a ver se os ratos não o atacam. Não haverá nem beringelas nem curgetes, e a batata, a cebola e a cenoura também só fazem sentido num terreno maior.

Alho e alho-porro estão fora de questão. Hei-de arranjar algum alho bravo, para a açorda. E uns quantos pés de beldroegas.

Talvez repita a beterraba e o pimento, e é natural que ponha umas quantas pevides de abóbora do lado de fora do muro, para crescerem como quiserem. Melancias e melões, não. A ver se o Luciano me arranja açaflor.

Tomate, naturalmente, não faltará. O cereja vai para um canto, ao pé do inhame. O carmen fica em primeiro plano.

Desta vez não farei burrinhas de canas nem estendais de arame. O sr. Dimas deixou aí uns cacetes de faia, retorcidos como mastros de ébano, e vou experimentá-los como suportes – ali, bem no meio, rodeados de porções geométricas de relva, como faróis no nevoeiro.

Este ano não vou usar o Excel para desenhar a horta. Mas é como se usasse.

Diário de Notícias, Março de 2015

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publicado por JN em 10/3/15

10.3.15.jpegSe eu tivesse um barco fazia piqueniques no alto-mar. Ia até ao Ilhéu das Cabras, ver a desova dos ratões, e depois deitava-me a ler, à deriva, fora do alcance dos telemóveis.

Se eu tivesse um barco fazia corridas com os roazes. Vestia uma roupa de marinheiro, às riscas azuis, e punha-me a fazer corridas com eles.
Se eu tivesse um barco usava a boina do Corvo que a Catarina me tricotou. Bebia uísque de uma garrafinha metálica, trazida no bolso do blazer, e atracava num café de Rabo de Peixe, a dizer palavrões e a armar confusão.
Se eu tivesse um barco chamava-lhe Lobo das Estepes.
Se eu tivesse um barco ia a São Jorge ver as fajãs, ao Pico ver as baleias e ao Faial ver as raparigas. Se eu tivesse um barco ia à Graciosa comer uma caldeirada, e essa era a primeira coisa que eu fazia.
Se eu tivesse um barco levava o meu pai a passear.
Se eu tivesse um barco ia apanhar lapas, pela maré baixa. Pescava serras e bonitos e mergulhava na baía de Angra, à procura de naus, galeões e caravelas.
E tesouros.
Se eu tivesse um barco comprava um monte de apetrechos, um transístor, uma geleira, uma gaita de beiços. Ensinava o Melville a nadar e depois púnhamo-nos a ouvir o relato.
Se eu tivesse um barco aprendia a cozinhar com água salgada e cerveja, como os brutamontes sentimentais. Atrelava o barco ao carro, para me fazer mania, e vinha para casa cozinhar com água salgada e cerveja.
Se eu tivesse um barco parava a meio-canal e fazia da Catarina a minha Kate Winslet.
Se eu tivesse um barco não tardava a naufragar. Atolei carros nas neves da Noruega, jipes nos desertos de Cabo Verde – naufragar um barco seria a coisa mais fácil.
Mas haveria de naufragar em estilo, com a minha roupa de marinheiro e a minha boina do Corvo.
* Diário de Notícias, Março 2015

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Segunda-feira, 9 de Março de 2015
publicado por JN em 9/3/15

9.3.15.jpegSentamo-nos antes da uma e já vem saindo gente. Almoça-se muito cedo, aqui. A certa altura, uma senhora comenta para outra: “Credo, com este vento...” Acha-nos malucos. Mas nós estamos confiantes: ao final de uma semana de trabalho, a ordem cósmica vai encarregar-se de fazer o vento rodar para Norte, deixando-nos protegidos sob os toldos.

Mandamos vir um Frei Gigante e uma travessa de lapas grelhadas. A Catarina gosta das bravas e eu gosto das mansas, o que talvez pudesse dizer tudo sobre nós mas não diz. Estas foram apanhadas há algumas horas, aqui mesmo ao lado, e o modo como recebem a manteiga, o alho e a massa de malagueta prova que foi para isto que nasceram.

Limitamo-nos a fazer parte de uma cadeia. Estamos aqui para servir.

Comemos uma sopa de marisco, apresentada dentro de um pão, e mandamos vir o peixe. Se for Inverno, talvez cherne. Se for Verão, lírio de certeza.

Ou então uma mista, daquelas que o Fernando costuma sugerir. O espadarte, dispensamos. Se não há lírio, então uma garoupa ou um boca negra, mais uma posta de cântaro e outra de xaréu.

Lá de trás, da igreja com as grandes portas vermelhas, toca o sino. De vez em quanto chega uma embarcação, que o guindaste iça para terra, enquanto um senhor com uma prancheta manda pesar as safatas. Passam crianças correndo atrás de uma bola.

Um rapaz com ar de cobói.

Uma motorizada.

E nós ali, a fumar, satisfeitos porque o vento mudou para Norte, ou então é do Frei Gigante – sonhando comprar uma chata com motor fora de borda, para passear aos sábados.

Os restaurantes tornaram-se o nosso grande luxo burguês. Perdemos o gosto das boutiques e dos stands, e o cinema anda impossível de se ver. Aos restaurantes, ainda vamos.

Mas a esplanada do Beira-Mar, num sábado de sol, não é restaurante: é milagre. Ademais se vista a partir de sexta-feira.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Sexta-feira, 6 de Março de 2015
publicado por JN em 6/3/15

6.3.15.jpegOlho por esta janela e lembro-me do nosso clube de futebol. Chamava-se “FC Merdaleja” (porque gostávamos de Herman José), tinha um jornal que era o “Melmac” (porque gostávamos de Alf) e exibia-se num campo a que demos o nome de “Estádio de Alvaluz” (porque eu era do Sporting e os meus primos do Benfica).

Só jogava quem comprasse o jornal, a dez escudos a edição. Havia notícias do clube, do campeonato nacional e da fórmula 1. Fazíamo-lo numa máquina de escrever e quem o imprimia era o sr. Artur, numa fotocopiadora da Base. Às vezes tínhamos de esperar 15 dias, o que dificultava o acompanhamento da actualidade.

Para fazer o campo, destruímos um pomar inteiro. Pusemos salmoura junto às árvores, uma a uma, e esperámos. O meu avô ainda viveu uns anos, mas à condição. Não estou certo de que tenhamos escapado à delinquência por tanta margem quanto isso.

É por causa daquele campo de futebol que, hoje, eu não vejo um pomar desta janela.

Vinham amigos de freguesias vizinhas, para jogar connosco. Outras vezes andávamos nós por aí. Fazíamos corridas de bicicleta na Canada do Rolo. Jogávamos com os grandes no relvado da Universidade. Passávamos tardes inteiras a rematar contra um portão verde que havia aqui ao lado.

Quando passava um carro ou uma senhora, parávamos. Se fosse uma mota ou o Fernandinho, o jogo seguia.

O Jorge António dava biqueiras, mas nunca se partiu nenhum vidro.

Fomos felizes, e, quando eu hoje vejo as mães das freguesias irem buscar os garotos todos os dias à escola, amontoando-se nos passeios, torno a ter a certeza disso. Há demasiado trânsito. Tentações de droga. Pedofilia. Uma criança já nem pode partir os dentes em condições. Nem ir à Sociedade jogar matrecos. Nem esquecer-se de tomar a ritalina.

O mundo está todo pior. Não é só nas grandes cidades.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Quinta-feira, 5 de Março de 2015
publicado por JN em 5/3/15

5.3.15.jpegAlgures no Inverno passado, o Melville fugiu-me para se pôr correr atrás de duas vacas. Tínhamos acabado de deixar a Canada da Serra em direcção aos pastos do Galão, por onde na altura fazíamos uma caminhada diária, e eu tirei-lhe a trela assim que saímos da estrada. Foi uns quinze metros cedo de mais: invadiu o primeiro cerrado, pôs-se a perseguir as bezerras que lá estavam e em poucos segundos, com o susto, elas tinham partido o fio electrificado que as circunscrevia.

Só depois, ao rever os acontecimentos desse dia, percebi o significado do que fiz a seguir. Antes mesmo de me informar sobre a quem oferecer-me para pagar os estragos, telefonei à minha mãe. No fundo, é sempre ela a parte ofendida em caso de desrespeito à terra. E, parecendo talvez que o que está por detrás disso é uma ordem matriarcal, mediterrânica e vagamente neurótica, o que na verdade está é um amor.

Escrevo pouco sobre a minha mãe. Somos demasiado parecidos. Apesar disso, é com ela que me sento a fazer listas de termos açorianos, personagens terceirenses e alcunhas da Terra Chã. Foi ela que, durante vinte anos, se empenhou em pôr-me a par dos mexericos e dos suicídios, das minudências e das tempestades. É com ela que falo do meu avô, é ela quem me cozinha ossos de suã e foi ela que me tornou um sentimental.

Se perco a paciência com a minha mãe, é comigo mesmo que perco a paciência. Se me ocorre enternecer-me comigo, é com ela que me enterneço. O nosso filtro sobre o mundo permanece o mesmo, apesar de eu ter feito missão de me livrar dele.

Ao fim de vários textos sobre os homens por detrás destas crónicas, é tempo de escrever sobre as suas mulheres. A começar pela minha mãe. O meu pai deu-me a devoção ao trabalho e à liberdade. A minha mãe deu-me o amor à terra.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Quarta-feira, 4 de Março de 2015
publicado por JN em 4/3/15

4.3.15.jpegEstava cá a Vera, pelo que foi ainda mais difícil. Tínhamos acabado de discutir sobre a tourada à corda e eu perdera. Nem sequer tentara persuadi-la dos méritos da ritualização da morte: o facto é que não feríamos o animal. No fim, esbarrara sempre nos mesmos argumentos anti-tauromaquia, definitivos como tudo o que é argumento – e ainda por cima deixara-me crispar, o supremo lapso de um anfitrião.

Agora seguia atrás das duas, caminhando calado. Tinha a minha dignidade.

E, de repente, desatei a chorar. Estávamos no Alto das Covas e acabara de passar a marcha de abertura. Cheirava a enxofre e a algodão doce. Então, saíram os Coriscos, cantando Angra como há muito um micaelense não a cantava.

Havia nos seus rostos uma admiração genuína, libertada após demasiados anos de bairrismos. E havia alegria. Os homens cantavam num staccato, tentando projectar a voz por sobre a própria atmosfera terrestre. As mulheres faziam florzinhas com as mãos.

Inesperadamente, desprenderam-se-me lágrimas. E mais lágrimas ainda.

Senti vergonha e enfiei-me num café, escondido por detrás de uma cerveja fresca. Não resultou. Nem a seguinte, nem a outra ainda, nem nenhuma delas.

Agora estava bêbedo e a chorar convulsivamente. Não assistia às Sanjoaninas havia quase duas décadas, apesar dos frequentes regressos à ilha. Junho nunca me dava certo. E, de súbito, tinha quinze anos outra vez – estava na Rua da Sé, passava a marcha oficial, letra de Álamo Oliveira e música de Carlos Alberto Moniz, e tudo era ainda possível.

“Angra sabe a pão agora/ cheira a branco e cantaria/ maquilhada tão senhora/ Angra noiva de alegria.” Ainda conseguiria cantá-la de cor.

Isto foi em 2010. Naquela noite, tomei uma decisão: nunca mais faltaria a umas Sanjoaninas. A Catarina não disse, mas tomou outra: haveríamos de viver aqui ao menos um tempo da nossa vida.

Diário de Notícias, Fevereiro 2015

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira, e a cidade de Lisboa. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011) e “Os Sítios Sem Resposta” (romance, 2012). Está traduzido, editado e/ou representado em antologias em países como Inglaterra, Polónia, Brasil, Espanha e Itália. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica, ao diário e à crítica, que desenvolve a par da escrita de ficção. (saber mais)
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