Algures no Inverno passado, o Melville fugiu-me para se pôr correr atrás de duas vacas. Tínhamos acabado de deixar a Canada da Serra em direcção aos pastos do Galão, por onde na altura fazíamos uma caminhada diária, e eu tirei-lhe a trela assim que saímos da estrada. Foi uns quinze metros cedo de mais: invadiu o primeiro cerrado, pôs-se a perseguir as bezerras que lá estavam e em poucos segundos, com o susto, elas tinham partido o fio electrificado que as circunscrevia.
Só depois, ao rever os acontecimentos desse dia, percebi o significado do que fiz a seguir. Antes mesmo de me informar sobre a quem oferecer-me para pagar os estragos, telefonei à minha mãe. No fundo, é sempre ela a parte ofendida em caso de desrespeito à terra. E, parecendo talvez que o que está por detrás disso é uma ordem matriarcal, mediterrânica e vagamente neurótica, o que na verdade está é um amor.
Escrevo pouco sobre a minha mãe. Somos demasiado parecidos. Apesar disso, é com ela que me sento a fazer listas de termos açorianos, personagens terceirenses e alcunhas da Terra Chã. Foi ela que, durante vinte anos, se empenhou em pôr-me a par dos mexericos e dos suicídios, das minudências e das tempestades. É com ela que falo do meu avô, é ela quem me cozinha ossos de suã e foi ela que me tornou um sentimental.
Se perco a paciência com a minha mãe, é comigo mesmo que perco a paciência. Se me ocorre enternecer-me comigo, é com ela que me enterneço. O nosso filtro sobre o mundo permanece o mesmo, apesar de eu ter feito missão de me livrar dele.
Ao fim de vários textos sobre os homens por detrás destas crónicas, é tempo de escrever sobre as suas mulheres. A começar pela minha mãe. O meu pai deu-me a devoção ao trabalho e à liberdade. A minha mãe deu-me o amor à terra.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
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