Se eu tivesse um barco fazia piqueniques no alto-mar. Ia até ao Ilhéu das Cabras, ver a desova dos ratões, e depois deitava-me a ler, à deriva, fora do alcance dos telemóveis.
Se eu tivesse um barco fazia corridas com os roazes. Vestia uma roupa de marinheiro, às riscas azuis, e punha-me a fazer corridas com eles.
Se eu tivesse um barco usava a boina do Corvo que a Catarina me tricotou. Bebia uísque de uma garrafinha metálica, trazida no bolso do blazer, e atracava num café de Rabo de Peixe, a dizer palavrões e a armar confusão.
Se eu tivesse um barco chamava-lhe Lobo das Estepes.
Se eu tivesse um barco ia a São Jorge ver as fajãs, ao Pico ver as baleias e ao Faial ver as raparigas. Se eu tivesse um barco ia à Graciosa comer uma caldeirada, e essa era a primeira coisa que eu fazia.
Se eu tivesse um barco levava o meu pai a passear.
Se eu tivesse um barco ia apanhar lapas, pela maré baixa. Pescava serras e bonitos e mergulhava na baía de Angra, à procura de naus, galeões e caravelas.
E tesouros.
Se eu tivesse um barco comprava um monte de apetrechos, um transístor, uma geleira, uma gaita de beiços. Ensinava o Melville a nadar e depois púnhamo-nos a ouvir o relato.
Se eu tivesse um barco aprendia a cozinhar com água salgada e cerveja, como os brutamontes sentimentais. Atrelava o barco ao carro, para me fazer mania, e vinha para casa cozinhar com água salgada e cerveja.
Se eu tivesse um barco parava a meio-canal e fazia da Catarina a minha Kate Winslet.
Se eu tivesse um barco não tardava a naufragar. Atolei carros nas neves da Noruega, jipes nos desertos de Cabo Verde – naufragar um barco seria a coisa mais fácil.
Mas haveria de naufragar em estilo, com a minha roupa de marinheiro e a minha boina do Corvo.
* Diário de Notícias, Março 2015
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