Quarta-feira, 8 de Abril de 2015
publicado por JN em 8/4/15

IMG_5637.JPGO Ti José Nogueira era uma das minhas personalidades favoritas. Sabia tudo sobre árvores, e o modo como brilhavam os seus olhos pequeninos mostrava que sabia muito sobre pessoas também.

O Luciano costuma contar que certa vez, ao roçar a quinta da Fonte Faneca, andou dias às voltas com uma queimada. Nunca conseguiu atear a fogueira, porque estava tudo verde e húmido. Foi pedir ajuda ao Ti José Nogueira e este veio no dia mais mal-encarado que encontrou, com dois fósforos na mão. Olhou para o firmamento, mediu o vento, a posição das nuvens e a alma do anfitrião, e inclinou-se sobre a ramagem.

Ateou uma queimada linda e ainda poupou um fósforo.

O Ti José Nogueira plantou-me um castanheiro, um dia. De vez em quando vinha vê-lo. E podou duas tangerineiras ao meu pai de um tal modo que hoje temos tangerinas para nós, para os melros e para algum vizinho que se engane no portão.

Às vezes eu dava-lhe boleia, de regresso do cemitério. Visitava sempre a campa da mulher. Cheguei a deixá-lo na Feira do Gado, onde ainda se negoceia em contos de réis. Encontrava-o com frequência a conversar com o Vieira, na cozinha deste, quando ia lá buscar sementes.

Conversavam muito, naquela amizade triste dos homens viúvos.

O Ti José Nogueira enterrou-se domingo. Perguntei o horário do funeral na venda e fui despedir-me. Leu-se do Êxodo, de Primeira a Coríntios e do Evangelho Segundo São João. A igreja estava cheia e eu era o único que não sabia quando levantar, sentar e cantar.

Do Ti José Nogueira não rezará a História. Quem mudou o mundo não foram os camponeses honestos, que pagaram os seus impostos e encheram a igreja da freguesia no dia em que foram a enterrar. Dos aventureiros, dos inventores e dos facínoras – deles, sim, reza a História.

Por isso se inventou a literatura.

* Diário de Notícias, Março 2015

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira, e a cidade de Lisboa. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011) e “Os Sítios Sem Resposta” (romance, 2012). Está traduzido, editado e/ou representado em antologias em países como Inglaterra, Polónia, Brasil, Espanha e Itália. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica, ao diário e à crítica, que desenvolve a par da escrita de ficção. (saber mais)
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