Quinta-feira, 16 de Abril de 2015
publicado por JN em 16/4/15

IMG_7657.JPGNa semana passada cruzei-me com o Luís. Emigrou para a América, adolescente ainda, e só voltou quatro ou cinco vezes. Desencontrámo-nos sempre. Tem dois filhos lindos e fala um português da Califórnia, cheio de goshes e sun-of-a-guns, no estrito cumprimento dos Dez Mandamentos. Perguntou-me o que faço e mostrou-me uma foto sua, orgulhosamente aos comandos de uma retroescavadora, a demolir um project algures no Vale do São Joaquim. Voltei 35 anos no tempo. Tal como os miúdos do resto do mundo queriam ser astronautas e polícias, nós queríamos ser pedreiros, serventes ou, nos casos de maior ambição, condutores de caterpillar. Tinham-nos caído as casas em cima – os nossos heróis eram esses homens venturosos que diziam asneiras, bebiam Cinzano e brandiam talochas. Começámos por roubar-lhes betão fresco para construir garagens para os carrinhos. Uma ilha transformada num estaleiro é o cenário ideal para o exercício da imaginação. Ao fim de algum tempo, insistimos tanto que pudemos ajudá-los a encher as placas. Acabámos por aprender a traçar massa, a rebocar paredes, a assentar blocos. As noções que guardo já me safaram várias vezes. Foi bonita, a reconstrução da Terceira após o terramoto de 1980. O Governo abriu uma linha de crédito e cada um tratou do seu problema. Houve excessos, aberrações, falcatruas. Mas as pessoas partilharam materiais e força de trabalho e, em cinco anos, estava quase tudo reerguido. Já então Angra tinha sido classificada pela UNESCO. Não tenho a certeza de que ainda exista esse tipo de açoriano. Não tenho a certeza de que ainda exista esse tipo de português. Mas, desde que encontrei o Luís, que queria ser condutor de caterpillar e cumpriu o seu sonho, tenho menos medo de que a terra volte a tremer.

Diário de Notícias, Abril 2015

comentar
| partilhar
2 comentários:
De A Menina da Rádio a 17 de Abril de 2015 às 13:15
:) Gostei muito.
De JN a 17 de Abril de 2015 às 13:29
:) Obrigado, Cristina

Comentar post

Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira, e a cidade de Lisboa. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011) e “Os Sítios Sem Resposta” (romance, 2012). Está traduzido, editado e/ou representado em antologias em países como Inglaterra, Polónia, Brasil, Espanha e Itália. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica, ao diário e à crítica, que desenvolve a par da escrita de ficção. (saber mais)
Moradas
no facebook
pesquisar neste blog
 
livros de ficção

Os Sítios Sem Resposta
ROMANCE
Porto Editora
2012
Saber mais
Comprar aqui


"O Citroën Que Escrevia
Novelas Mexicanas"

CONTOS
Editorial Presença
2002
Saber mais
Comprar aqui


"O Terceiro Servo"
ROMANCE
Editorial Presença
2002
Saber mais
Comprar aqui
outros livros

Bíblia do Golfe
DIVULGAÇÃO
Prime Books
2011
Saber mais
Comprar aqui


"Banda Sonora Para
Um Regresso a Casa

CRÓNICAS
Porto Editora
2011
Saber mais
Comprar aqui


"Crónica de Ouro
do Futebol Português"

OBRA COLECTIVA
Círculo de Leitores
2008
Saber mais
Comprar aqui


"Todos Nascemos Benfiquistas
(Mas Depois Alguns Crescem)"

CRÓNICAS
Esfera dos Livros
2007
Saber mais
Comprar aqui


"José Mourinho, O Vencedor"
BIOGRAFIA
Publicações Dom Quixote
2004
Saber mais
Comprar aqui


"Al-Jazeera, Meu Amor"
CRÓNICAS
Editorial Prefácio
2003
Saber mais
Comprar aqui
subscrever feeds
pesquisar neste blog
 
tags
arquivos
links