Foi num dia de Verão que eu descobri o gosto de comer. Imagino que fosse Verão porque havia um prato com repolho cozido no centro da mesa e uma mosca cirandava em volta, tentando perfurar a tampa de rede que o cobria.
Ou talvez o meu cérebro tenha inventado essa tampa. Não sei se alguma vez houve tal coisa lá em casa.
De qualquer modo, havia um pedaço de repolho e uma mosca voava. Estava calor. E, então, apareceu o sr. Veber.
O sr. Veber era um dos homens mais interessantes da minha infância. Desde logo porque se chamava Veber (ou seria Webber?), o que me remetia para lugares distantes. Abundam por aqui os nomes estrangeiros – flamengos, escoceses, franceses –, fruto de séculos de escalas transoceânicas, mas em regra essa gente prosperou, instalando-se na cidade ou fechando-se por detrás dos portões das suas quintas.
Ademais, o sr. Veber era caiador e retelhador. A cal encantava-me: pelo cheiro, pelas brochas, pelo modo como a chuva limpava os respingos e deixava o que era pintura mesmo. E, além disso, por aquela altura também já imperava aqui aquilo a que chamamos “telha do continente”, e que dispensa retelhação.
Gosto da ideia de desmontar, limpar e montar de novo, asseado mas com história.
Portanto, naquele dia, a minha mãe propôs algo de beber ao sr. Veber. Em vez disso, ele pediu um garfo, cortou um tassalho grosso do repolho e comeu-o de olhos fechados. E, ao mastigá-lo, era como se o próprio repolho pudesse ter nuances, veios e nervos, entretons – uma abundância de pequenos sabores onde um bom palato poderia descobrir o mundo.
Isto foi há muitos anos, e eu tenho a impressão que ainda não há uma grande refeição em que não me lembre do sr. Veber a comer aquele repolho. Somos formados por coisas assim: quase nada, tantas vezes.
Diário de Notícias, Abril 2015
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