Estava cá a Vera, pelo que foi ainda mais difícil. Tínhamos acabado de discutir sobre a tourada à corda e eu perdera. Nem sequer tentara persuadi-la dos méritos da ritualização da morte: o facto é que não feríamos o animal. No fim, esbarrara sempre nos mesmos argumentos anti-tauromaquia, definitivos como tudo o que é argumento – e ainda por cima deixara-me crispar, o supremo lapso de um anfitrião.
Agora seguia atrás das duas, caminhando calado. Tinha a minha dignidade.
E, de repente, desatei a chorar. Estávamos no Alto das Covas e acabara de passar a marcha de abertura. Cheirava a enxofre e a algodão doce. Então, saíram os Coriscos, cantando Angra como há muito um micaelense não a cantava.
Havia nos seus rostos uma admiração genuína, libertada após demasiados anos de bairrismos. E havia alegria. Os homens cantavam num staccato, tentando projectar a voz por sobre a própria atmosfera terrestre. As mulheres faziam florzinhas com as mãos.
Inesperadamente, desprenderam-se-me lágrimas. E mais lágrimas ainda.
Senti vergonha e enfiei-me num café, escondido por detrás de uma cerveja fresca. Não resultou. Nem a seguinte, nem a outra ainda, nem nenhuma delas.
Agora estava bêbedo e a chorar convulsivamente. Não assistia às Sanjoaninas havia quase duas décadas, apesar dos frequentes regressos à ilha. Junho nunca me dava certo. E, de súbito, tinha quinze anos outra vez – estava na Rua da Sé, passava a marcha oficial, letra de Álamo Oliveira e música de Carlos Alberto Moniz, e tudo era ainda possível.
“Angra sabe a pão agora/ cheira a branco e cantaria/ maquilhada tão senhora/ Angra noiva de alegria.” Ainda conseguiria cantá-la de cor.
Isto foi em 2010. Naquela noite, tomei uma decisão: nunca mais faltaria a umas Sanjoaninas. A Catarina não disse, mas tomou outra: haveríamos de viver aqui ao menos um tempo da nossa vida.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
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