O Miguel está todo contente: quatro anos depois de se casar, vai começar a fazer a sua casa. No fundo, não sabe como aguentou tanto.
Disse-mo um dia destes, quando nos cruzámos na pastelaria. “Finalmente!” Dei-lhe os parabéns e, além do café, pedi uma covilhete de leite. O açúcar conforta-me.
Na verdade, não somos assim tão diferentes. Os meus vizinhos continuam a construir casas novas quando se casam porque querem revestir-se de uma sensação de urbanidade. Eu gosto de viver em casas velhas, rústicas e gastas, porque quero – também quero – revestir-me de uma sensação de ruralidade.
Em ambos os casos, neste lugar onde vivemos como no século XXI, há um grau de ilusão.
Poderiam, evidentemente, invocar-se a economia, a racionalidade, a própria paisagem. Há demasiadas casas livres na ilha – é estúpido construir mais. Porque custa caro e porque, na maior parte das vezes, tem ficado feio.
Horrível.
Não argumentarei com mais do que a memória. Às vezes ponho-me no meu jardim, olho para as escadas e imagino a minha mãe ali sentada, aos sete ou oito anos, a debulhar ervilhas. Vejo o castanheiro do cerrado e penso no cabo de aço que o meu avô inventou para fazer descer os molhes de lenha da mata. Aproximo-me do curral do porco e encontro o meu, pai acabado de chegar à terra, um garoto ainda, melhorando-o para mostrar os dotes ao sogro.
Eu não quero começar do zero. Nunca quis. Começar do zero haveria de custar-me não só memórias, mas medos e culpas. Nem sequer sei como se pode viver sem o medo e a culpa.
Mas sei que se pode. Vejo-o todos os dias. E, no ponto da vida em que estou, já não aplaudo nem deploro. Enquanto houver jazz e amendoins, tudo o mais conservará algum grau de irrelevância.
Diário de Notícias, Fevereiro 2015
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