Um dia destes, o meu sobrinho pediu-me para lhe fazer o nó a uma gravata. Pôs o seu ar mais convencido e esticou-me a gravatinha azul da filarmónica, com um trejeito negligée que Miguel Ângelo podia ter usado ao apresentar o tecto da capela ao papa.
O Gaspar é tudo o que eu gostaria de ter sido aos nove anos: rufia, mulherengo, adorável. Ter nascido com o cabelo loiro e o rosto perfeito ajudou. Mas o melhor é mesmo dele. As raparigas vêm recebê-lo ao portão da escola. Os rapazes reúnem as bicicletas em volta da sua.
Está a começar a aprender trompa de harmonia, o Gaspar. Não vai ser solista, e ainda bem: sempre permite aos outros equilibrarem um pouco os pratos da balança. Até lá, é o porta-estandarte. Faz um ar presunçoso e marcha à frente dos músicos, com a Raquel da Teresinha ao lado, loira também.
A ilha Terceira tem 24 bandas filarmónicas para menos de 60 mil habitantes. Acompanham procissões, cortejos e até touradas. Há actuações de trazer por casa e outras cheias de pompa. Quem assista ao dia do desfile das Sanjoaninas sabe que podem atingir algum virtuosismo.
Há um ano ou dois, chegou a ser lançada uma caderneta de cromos com os músicos da ilha. Foi um sucesso e não me surpreende: ouço-os tocar, alternando melodias lúgubres e exuberantes, como se contassem da própria vida, e parecem-me sempre o último estertor de uma coisa antiga e boa – um resquício de tudo o que na história da espécie houve um dia de brio, rectidão e generosidade.
Por mim, não me importo de ser o homem que faz os nós às gravatas. Como o meu avô era. Há uma mundividência no homem que faz os nós às gravatas da vizinhança. Mas é consolo apenas. O que eu queria era ter desfilado em frente à filarmónica. E que as raparigas me viessem buscar ao portão.
* Diário de Notícias, Março 2015
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