Há dias, uma rádio local passou Jorge Palma. Já não ouvia aquela canção há que tempos. Pus o som no máximo e desatei aos berros: O meu amor tem lábios de silêncio/ E mãos de bailarina/ E voa como o vento/ E abraça-me onde a solidão termina.
Isto era impossível há três anos, quando ainda vivia em Lisboa. Jorge Palma tornara-se demasiado uncool.
Fiquei a pensar se o facto de o cérebro do Homo Sapiens estar a encolher tanto desde que se criaram as cidades teria a ver apenas com a quantidade de tarefas de que a cidade o dispensou. Talvez tenha a ver também com as coisas de que a cidade o proibiu de gostar.
O jovem intelectual lisboeta é hoje, acima de tudo, um esteta. Cultor e polícia do bom-gosto, está pronto a morrer se algum dia for apanhado a ultrapassar a linha. A não ser que se trate de um prazer culposo, joker que só pode usar três vezes.
A vida do jovem intelectual lisboeta não é assim tão diferente da do Pac-Man.
Devemos-lhe muito: sem ele, isto era uma bandalheira. Estar na pele dele, não. Foi um sufoco.
Um jovem intelectual lisboeta vive refém da sua personagem. Não arrisca e raramente experimenta. É céptico por disciplina militar e absoluto por princípio. Não se esparrama no sofá a ver a Jennifer Aniston. Nem vai ao café de sweatshirt. Nem bebe uma Super Bock pela garrafa, a não ser que esteja a cozinhar, com jazz em fundo, e haja fotógrafos.
Um jovem intelectual lisboeta jamais cantaria Jorge Palma, a não ser que o Jorge Palma se tivesse tornado tão uncool, tão uncool que houvesse dado a volta e ficado cool de novo.
Portanto, só para cantá-lo aos berros já valeu a pena partir: O meu amor ensinou-me a chegar/ Sedento de ternura/ Sarou as minhas feridas/ E pôs-me a salvo para além da loucura.
O facto de o meu cérebro estar outra vez a crescer é apenas um bónus.
* Diário de Notícias, Janeiro 2015
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