No fim-de-semana, o meu pai pregou-nos um susto – desses que só pregam aqueles que não se queixaram de nada durante demasiados anos.
Já escrevi bastante sobre ele. É o melhor homem que conheço e a pessoa que me ensinou o valor do trabalho. Cada dia que os desmandos do tempo me privarem da sua presença será menos um dia ao meu dispor para compensar os seus esforços.
Coisa que não estou sequer perto de fazer.
Felizmente, ficou tudo bem. Ainda há pouco estive a explicá-lo a uma vizinha, debruçado à varanda: ficará tudo não apenas como estava, mas melhor. Já o explicara esta manhã, na venda, aos circunstantes que o tinham ouvido da minha mãe havia apenas alguns minutos, mas quiseram ouvi-lo de mim também. E amanhã sei que vou fazê-lo de novo, porque querem ter a certeza.
Andamos nisto desde sábado, e de início inquietou-me um bocado. Telefonemas e mensagens, e-mails e até correio de Facebook – tem havido de tudo. Velhotes sequestram-me junto ao caixote do lixo, pela manhã, para saber de pormenores. Senhoras que não conheço interpelam-me nas ruas da cidade. Automóveis passam na estrada e abrandam a perguntar.
A dada altura, apeteceu-me sacudir: “Deixem-nos viver a nossa preocupação!”
Mas é fácil distinguir o voyeurismo do interesse genuíno. Mesmo pondo de parte a ligeireza, o solipsismo e a inocente palavra de circunstância, continua a ser muita gente. O número também conta e não deixa de ser um sinal do homem que ele é.
Amanhã, se tudo correr bem, vamos buscá-lo. Traz um aparelho electrónico montado no peito e pode viver com ele mais cinquenta anos.
No fim, quase acredito que correu bem também porque tantos se preocuparam. Privacidade para quê, afinal?
Diário de Notícias, Janeiro 2015
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