Havia algo no quarto dos meus pais que o tornava sagrado. Nunca percebi exactamente o que fosse, embora pudesse ser um silêncio.
Visitávamo-lo amiúde, eu para roubar meias lavadas, a Laura para se enfeitar com batons e colares. Entrávamos e saíamos furtivos, como se não soubessem todos que entrávamos e saíamos.
Lá dentro, guardávamos reverência.
Era o único quarto da casa que tinha sempre a cama feita, e isso já o distinguia um pouco. Mas aos domingos entrava-lhe a luz pelas janelas, os carros passavam esparsos lá fora, muito devagar, e tudo aquilo me parecia bom e conforme.
As bugigangas em cima da cómoda. O reloginho preto. As janelas a arejar. As cadeiras de camurça. Os puxadores das mesinhas de cabeceira.
O silêncio.
Às vezes eu já trazia o saque na mão, muito aflito, e no último instante sentava-me sobre a colcha aveludada, aquecida pelo sol, a aspirar aquele cheiro doce que ainda hoje confundo com uma tarde de domingo.
Havia algo no quarto dos meus pais que era trabalho, honestidade férrea, modéstia. Que era o lastro da pessoas concretizadas e, no entanto, com o tempo todo pela frente ainda. Que era tudo aquilo que eu queria ser, mesmo que a mim próprio atribuísse futuros, glórias, galáxias.
Sempre fui mais ambicioso do que inteligente. A minha salvação foi acreditar.
No outro dia, pareceu-me detectar o mesmo cheiro doce no meu próprio quarto. Era domingo, e o Inverno tornara a abençoar-nos com sol. Os carros passavam esparsos lá fora e, de vez em quando, um cão latia no horizonte.
Deitei-me sobre a colcha quente e fechei os olhos.
Mas não. Não era aquele silêncio. Àquele silêncio, nunca mais o encontrei. Acho que é sobre ele que escrevo todos os dias.
* Diário de Notícias, Janeiro 2015
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