Quinta-feira, 11 de Dezembro de 2014
publicado por JN em 11/12/14

11.12.14.jpegVisitamos os últimos amigos antes do regresso, e os comentários são os mesmos do primeiro dia: estamos com um ar magnífico, sereno, saudável. Eu passei o ano a trabalhar quase ininterruptamente durante catorze horas por dia, às vezes quinze ou dezasseis. A Catarina anda desfeita da coluna. Aparentemente, mantemos um ar tranquilíssimo.

Não é apenas cortesia. As pessoas também vêem em nós aquilo que querem ver. Acham que estamos com óptimo aspecto porque querem acreditar nisso. Porque precisam de acreditar que existe, apesar de tudo, uma saída airosa para isto – para este sufoco, para esta chuva, para esta crise. Nós gostamos de poder servi-los.

A verdade é que a velha casa dos Dois Caminhos não tardou a tornar-se um frenesi de livros, traduções, crónicas de jornal. Há refeições para fazer, lixo para mudar, burocracias. A horta deste Verão rebentou de monda. A mais simples ida ao médico tornou-se um terramoto na rotina. Até para que o Melville pudesse manter a dose ideal de exercício diário foi preciso, a dada altura, comprar uma passadeira eléctrica.

Os vizinhos acham que somos maluquinhos. Provavelmente, somos mesmo.

Mas este domingo, quando pousarmos nas Lajes e percorrermos a Planície Central em direcção a Angra, por entre as beladonas, e largarmos as malas no quarto que durante anos pertenceu a Maria do Carmo e José Guilherme e ouvirmos o apito da carrinha do peixe, para cima e para baixo, e aspirarmos o ar da Terra Chã, aquela mistura inocente de leite morno, erva húmida e bosta de vaca, também nós (sim, também nós) nos sentiremos impregnados dele.

Não estaremos a mentir-nos a nós próprios.

Diário de Notícias, Novembro 2014

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Quarta-feira, 10 de Dezembro de 2014
publicado por JN em 10/12/14

IMG_3254.JPGPublico no meu Instagram a foto de um crepúsculo lisboeta e as reacções não se fazem esperar: “Estás cheio de saudades de viver aí”, “Se calhar chegou a hora de voltares” – coisas assim. Fez-me lembrar aquilo que sempre nos perguntavam, estudantes em Lisboa, da primeira vez que nos viam de regresso para férias: “Quando é que te vais embora?”

Mas é mais do que isso.

A tensão do ilhéu com o espaço onde vive é o mais importante traço da sua identidade. Não sei se existirá também na restante província, mas talvez ninguém o pudesse explicar tão bem como António Variações. O ilhéu passa o ano a arfar pela partida. Ausenta-se três dias e já não se aguenta com saudades de casa. Volta à terra e lá fora é que era – um dia faz as malas de vez.

Os açorianos propriamente ditos dão a Lisboa o nome de Lá Fora. A escolha de palavras tem de ter um significado.

Lembro-me de quando cheguei, no Verão de 2012, muito comovido. Creio que nem os amigos mais próximos compreenderam bem. Os restantes torceram o nariz. Eu estava doente. Tinha falido. Vinha fugido à polícia. Tinham-me prometido uma carreira política, um cargo numa empresa, um latifúndio cheio de subsídios. O meu casamento ruíra.

Para muitos ilhéus, só faz sentido viver numa ilha em duas circunstâncias: ou se é de lá, ou se vai para lá em fuga de alguma coisa. “Mas eu sou de cá”, ocorria-me protestar, quando ainda achava que era de um debate que se tratava. “Sim, mas já és mais de lá”, respondia alguém – e a mágoa que havia nessas palavras eram todos os anos em que não se fizera as malas.

No primeiro ano, gozei a festa. No segundo, aprendi a liberdade. No terceiro já não há regressos: há vida.

Diário de Notícias, Novembro 2014

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Terça-feira, 9 de Dezembro de 2014
publicado por JN em 9/12/14

IMG_2970.JPGCai sobre Lisboa uma chuvinha benigna, daquelas de abrir o guarda-chuva e fechá-lo ao fim do quarteirão. O efeito é o mesmo de um dilúvio. O trânsito engarrafa. Há apitos. Mulheres bem vestidas erguem-se às esquinas, em busca de um táxi. Rapazes a quem os fatos assentam mal, com gravatas fluorescentes à treinador de futebol, correm entre beirais, segurando as lapelas.

Uma amiga de há mais de duas décadas pede para adiarmos o nosso almoço para o dia seguinte.

Surpreendo-me, como se me tivesse esquecido. Para nós, açorianos, isto não chega a ser uma chuvinha: é quase bom tempo. Mais de cinco dias retidos na ilha das Flores, sem comunicações, combustíveis ou farinha – só começamos a enervar-nos a partir daí.

Sorrio e acendo um cigarro.

Na Tezenis do Rossio, um rapaz e uma rapariga dançam na montra, vestidos de pijama. Vão acenando um pequeno cartaz. Têm vergonha um do outro e têm vergonha dos clientes, que por sua vez sentem vergonha por eles também.

Nem uma só pessoa pára a ver a montra. Tresanda a desemprego, a desespero e a humilhação. E, ademais, pinga.

Sinto saudades do meu cão. Do meu nevoeiro.

Pergunto-me se o plátano já perdeu as últimas folhas, para que possamos começar a moldá-lo. Telefono ao Chico a ver se acabou de arrumar a garagem.

Lembro-me da lenha que tenho de encomendar para o Inverno.

Fui picado pelo mal do apego à terra. Como aqueles a quem torcia o nariz, parto excitado e, ao fim de uma semana, estou repleto de melancolia. Acontece até com continentais que em algum momento se mudaram para a ilha, e eu ainda tenho sobre eles o peso da grande deusa Memória.

A cidade trata-me bem, mas ainda vem longe a hora do regresso. É despachar as reuniões e abreviar.

Diário de Notícias, Novembro 2014

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Segunda-feira, 8 de Dezembro de 2014
publicado por JN em 8/12/14

IMG_7096.JPGEsta semana já me chamaram lumbersexual umas três ou quatro vezes. Aparentemente, nem pondo-se a milhas um tipo escapa às categorizações da grande cidade: basta vir uns dias de visita, que logo tem de ser enfiado na gavetinha certa.

Desta feita, não é mau. Chegámos àquele momento em que os tipos gordos, desleixados e de mochila às costas podem ser considerados totalmente desejáveis. Suponho que, no meu caso, o facto de chegar do campo ajude, mesmo não vestindo uma camisa aos quadrados há uns dez anos. Mas também nós tínhamos de ter o nosso dia.

De resto, não difere em nada dos restantes, este esforço de tipificação. Podia ser um método para entender o mundo. Não é.

Vivemos um tempo de tribalismo como nenhum outro no percurso desta civilização (eu ainda digo “civilização”). As guerras andam longe, Deus desapareceu das contas e estamos todos cada vez mais igualmente pobres. Como haveríamos de organizar-nos?

Se não há contrastes, há matizes. A verdade é que precisamos de uma camisola. Bem vistas as coisas, nem tudo é mau nisso. Para as equipas de futebol, por exemplo, é óptimo.

Precisamos de pertencer a algo mais amplo do que nós. Precisamos de pertencer a algo que nos transcenda e a que, em todo o caso, possamos continuar a pertencer depois da morte.

Precisamos de vencer a morte e há cada vez menos ferramentas.

Talvez só a obsessão da fama caracterize melhor este século. A fama dispensa as tribos. A fama é a nossa própria tribo – coisa mais fixe não haverá.

Felizmente, as modas demoram sempre a chegar às ilhas, pelo que posso aproveitar esta semana na capital e a próxima na Terceira. Não me parece que uma coisa assim dure mais de quinze dias.

Tal pena ser casado.

Diário de Notícias, Novembro de 2014

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Sexta-feira, 5 de Dezembro de 2014
publicado por JN em 5/12/14

IMG_3045.JPGCurtos dias na capital, para afazeres e afectos. Na primeira noite vamos ao cinema – ao cinema a sério –, talvez a única coisa que não deixou de fazer-nos falta. Na tarde seguinte abreviamos o trabalho e dividimo-nos para namorar a cidade.

De qualquer modo, andamos a precisar de roupas. Cada um pode gastar, vá lá, cem euros.

Cirando o resto da jornada pela Baixa, pelo Chiado, pelo Bairro Alto. Persuado-me a abrir camisolas. Ergo no ar calças de ganga, tentando imaginá-las vestidas.

Os números são cada vez mais pequenos, ou então sou eu que estou gordo. Procuro entre as camisas – parece-me tudo demasiado colorido, ou então aos quadrados.

Não me imagino dentro de coisas a que chamem slim fit.

Sinto-me tentado por um boné de feltro, mas já tenho um azul-escuro, de bombazina.

Em todas as lojas há rapazes a discutir a roupa com as empregadas. Usam palavras com “cerzido” e “espinhado”. Saem frustrados com a escassez de soluções e continuam a debater o problema, uns com os outros, rua abaixo.

Sento-me na velha Barbearia Campos. Mando cortar, a ver se me ocorre um plano. Nada.

As livrarias são elas próprias um estardalhaço de cor e de bulício.

Às seis em ponto, o homem-estátua da Rua Augusta desfaz a sua pose de Bonaparte e põe-se a arrumar o palanque. Instala-lhe umas rodinhas e empurra-o pelas ruas dos Douradores e dos Fanqueiros, o pombo artificial ainda empoleirado no seu ombro esquerdo, muito obediente.

Perco-o de vista e depois deixo de ouvir também o carrinho, chiando.

Cai a noite.

Entro numa dessas lojas do costume e mando vir dois maços de cuecas. “Boxers”, embelezo. Chego a ficar decepcionado quando a empregada me pede menos de trinta euros.

Diário de Notícias, Novembro 2014

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira, e a cidade de Lisboa. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011) e “Os Sítios Sem Resposta” (romance, 2012). Está traduzido, editado e/ou representado em antologias em países como Inglaterra, Polónia, Brasil, Espanha e Itália. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica, ao diário e à crítica, que desenvolve a par da escrita de ficção. (saber mais)
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