Sexta-feira, 1 de Maio de 2015
publicado por JN em 1/5/15

IMG_3767.jpgPara a semana faço uma alcatra e convido os Pereiras. A Telma veio cá ontem trazer uma posta de carne. Tocou ao portão e disse: “É uma esmola pelo Senhor Espírito Santo, que tem estado comigo este tempo todo.” Deu uma palmadinha na barriga.

A Telma é a mais nova dos oito garotos da minha primeira infância: quatro casais de irmãos que faziam tudo juntos. Está grávida e isso surpreendeu-me. A gravidez precoce alastra nestas ilhas, mas aos sete anos é realmente cedo de mais.

Até à Segunda-Feira de Pentecostes, o sino do portão tocará mais vezes. Só aqui na Terra Chã, há quatro impérios do Divino. Cada um deles celebrará o Bodo à sua maneira, e em vários casos o mordomo acabará por fazer-nos chegar uma esmola.

Subsiste uma utopia nisto. Cientistas estudaram as Irmandades do Espírito Santo, disseminadas desde o século XVI, e encontraram na sua extraordinária horizontalidade os mesmos elementos em que ainda hoje se sustentam modelos de gestão de excelência dos países mais desenvolvidos.

É uma forma vanguardista de democracia. E, no entanto, é também mais do que isso. As marcas deixadas pelos primeiros habitantes desta ilha, quem quer que tenham sido, estão impregnadas de uma sabedoria ecológica precoce. A sua relação com os elementos exprime percepções particulares da morte e do transcendente, e resiste nelas uma sensibilidade ambiental que marca tudo o resto: a religião e a mitologia, o folclore e os saberes.

O culto do Divino é o resultado disso tudo. O culto, as irmandades e a filosofia do Divino. O misticismo e a partilha destas sete semanas após a Páscoa.

Até 25 de Maio, viveremos sob esse signo. A seguir vêm as touradas à corda. Se tenho mesmo de pertencer a um grupo, ademais humano, ainda bem que é a este.

Diário de Notícias, Abril 2015

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Quinta-feira, 23 de Abril de 2015
publicado por JN em 23/4/15

IMG_2190.JPGÀs vezes temos um pico de trabalho e suspendemos as caminhadas matinais. Outras é o Melville que anda impossível, a arfar por passeios longos, e temos de mudar de trajecto e de hora, porque a princesa não tolera que outros cães pisem o mesmo alcatrão que ela.

O regresso é sempre encantador: porque a paisagem tornou a mudar, porque o mar nos espera na ida e a montanha na vinda, e também porque pelo meio há o Guarita.

O supermercados Guarita, agora uma pequena cadeia, são o epítome de um tempo. Por um lado, hão-de ter prejudicado algum comércio tradicional. Por outro, não deixam de ser eles próprios comércio tradicional. Abrem e fecham cedo, têm os mesmos empregados durante anos e conhecem os clientes pelos nomes, pelos hábitos e pelas reputações.

Vamos desde o primeiro dia ao Guarita da Terra do Pão. Abastecemo-nos de mercearias, cigarros e cafés. As empregadas assinalam quando chegamos dez minutos mais tarde ou mais cedo. Não havendo outro tema, perguntam pelos livros ou pelo cão.

Aqui há dias, encomendámos cuscuz. Certos produtos continuam algo estrangeiros aqui, pelo que às vezes temos de ir ao capitalismo comprar parmesão, pesto, óleo de amendoim. Entretanto, pedimos ao sr. Marcelino para ver se conseguia arranjar cuscuz.

Tratou de tudo em 48 horas: mandou investigar as marcas, fez uma ronda pelos outros supermercados, conferiu connosco do que se tratava. Dois dias depois, não havia uma empregada que não tivesse para nós o recado de que o cuscuz chegara e, afinal, não era massa.

Trouxemos um pacote apenas. Os restantes ainda lá estão. Trá-los-emos um a um, até que fiquemos cheios de tagines e tabboulehs por uns meses.

Nem sempre se encontrava esta alegria no velho comércio. Não vivemos um tempo tão desesperado assim.

Diário de Notícias, Abril 2015

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Quarta-feira, 22 de Abril de 2015
publicado por JN em 22/4/15

IMG_5925.JPGSempre que posso, visito a D. Maria de Fátima. Desço a Terra Chã na direcção da Boa-Hora, viro para o Pico da Urze e, antes de chegar às Figueiras Pretas, estaciono em frente à escola primária das Bicas de Cabo Verde.

A geografia não é de somenos. Durante anos, eu chegava de Lisboa, para férias ou reportagens, e a primeira coisa que fazia era percorrê-la. A d. Maria de Fátima coze um pão de milho sem igual aqui na ilha. A certa altura, deixou de haver sentido em regressar, sentar-me à frente do cozido de suã que a minha mãe me preparava e não ter aquele pão de milho.

Mas, sobretudo, a D. Maria de Fátima vem da Urzelina, na ilha de São Jorge. O meu avô também vinha da Urzelina. Visitá-la era como começar cada regresso com um pedido de bênção aos meus antepassados. Tornou-se-me muito íntimo, aquele trajecto – quase uma via sacra.

Está sempre de faces rosadas, a D. Maria de Fátima. Já ultrapassou os 75 e continua a trabalhar. Tem netos em cursos supletivos, e infelizmente a ética de trabalho também já não é o que era. Sempre que a visito, queixa-se dos tempos e dos esforços a que ainda tem de dar-se. Mas eu sei que, mesmo que pudesse, não deixaria de cozer o seu pão. Ali, ao fundo daquela rampa, naquela antiga garagem que há tantos anos transformou em forno – ali está a sua consola de comando, a sua janela sobre o mundo.

A D. Maria de Fátima raramente me deixa pagar o pão. Se o quero mesmo fazer, tem de ser à má-fila. Quando lanço um livro novo, vou lá levar-lho. Outras vezes limito-me a aceitar o seu presente e dou-lhe dois beijinhos. Ela não quer, porque está afogueada do calor do forno, suando. Mas eu faço um ar despachado e dou-lhos na mesma.

Esta crónica não tem uma punchline. Procurei-a e não a encontrei. É porque a D. Maria de Fátima não precisa.

Diário de Notícias, Abril 2015

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Terça-feira, 21 de Abril de 2015
publicado por JN em 21/4/15

IMG_4529.JPGSempre que penso nos primeiros tempos, lembro-me daquele dia em que fomos à RIAC actualizar os documentos. Somos maus com burocracias, ou pelo menos com aquelas que não envolvem penhoras bancárias. Mas estávamos felizes com a mudança e ansiosos por oficializá-la. A Loja da RIAC, versão regional da Loja do Cidadão, tratava de tudo.

“É mais rápido do que em Lisboa”, tinham-nos dito. E, portanto, em vez de limparmos dois dias de agenda, munindo-nos de farnel e tenda de campismo, tomámos um pequeno-almoço reforçado, comprámos garrafas de água e fomos ter à sucursal de Santa Bárbara, instalada no edifício da Casa do Povo, e onde – garantiam-nos – perderíamos menos tempo.
Despachámo-nos em dez minutos. Exagero: oito. Numa salinha onde entravam e saíam velhotes, com a cerimónia de que só os homens do campo sabem revestir-se, uma senhora aviava. Tinha um saco de cebolas no chão, oferecido por algum desses velhotes a que dera uma ajuda com os papéis, e os seus dedos dançavam sobre o teclado como se antecipassem as nossas respostas.
A certa altura, deixei a Catarina a assinar no scan e fui meter-me com a criança sentada na mesa ao lado, a colorir com canetas de feltro. “E tu, és o dos passaportes ou o da conta da luz?” O menino fez um ar pispirreto: “A p’ssora ‘tava doente, home’!” E pôs-se a pintar uma barba ao boneco que tinha à frente, levantando os olhos na minha direcção e copiando cada arabesco, cada pêlo solto, cada pelada.
Pareceu-nos logo um lugar onde gostaríamos de viver: um lugar onde a tecnologia de ponta podia coexistir com um saco de cebolas, uma criança a colorir e alguma eficiência. Nesse sentido, decepcionámo-nos um pouco. Às vezes, no lugar das cebolas está uma dúzia de ovos, o que faz muito mal ao colesterol.

Diário de Notícias, Abril 2015

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Segunda-feira, 20 de Abril de 2015
publicado por JN em 20/4/15

IMG_4096.JPGMetade das razões por que continuo a fazer uma horta prendem-se com o gosto de comprar os plantios. Uma horta dá pouco rendimento e, para quem tantas vezes tem menos tempo livre do que gostaria, pode até constituir factor de stress.

Custa ver a monda a crescer e os caracóis passeando-se e os melros de tomate-cereja no bico sem, no momento certo, poder sair ao quintal e mostrar-lhes quem manda. E, no entanto, só esse primeiro sábado de Primavera, em que desço à cidade a comprar plantios e sementes, já vale a pena.

Sábado foi assim. Angra estava feliz, famílias inteiras circulando pelos fornecedores de ocasião e pelas lojas especializadas. Havia fila no Basílio Simões. Homens conversavam sobre futebol no José Tomás e no Flores & Parreira. Senhoras cirandavam entre as prateleiras das boutiques com um cartuchinho de couve merceana na mão.

Só não fui ao Mercado do Gado no domingo porque era Páscoa e Jesus expulsa os vendilhões. Foi pena, porque gosto de ver os velhos a negociar, fingindo-se desinteressados, passeando em volta e desgastando o oponente até lhe desferirem o seu golpe quase capitalista. É o meu modo de prolongar aquele sábado.

Assim, regressei ao velho estabelecimento de Basílio Simões & Irmãos, com as suas portadas largas e os seus cheiros a especiarias. Em redor conviviam panelas de ferro, sacas de ração animal e bacalhau seco, funis de plástico, papel de parede e guarda-chuvas de chocolate, fogareiros e óleos de fígado de bacalhau, tachos de alumínio e brinquedos. Ao lado, numa salinha, três idosos faziam contas, vestidos de negro.

Comprei o que precisava e mandei embrulhar em papel pardo. Depois pus-me a passear. Pelo menos três pessoas conhecidas abriram os braços, num sorriso benigno: “Olha, o Joel veio à cidade!”

Diário de Notícias, Abril 2015

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Domingo, 19 de Abril de 2015
publicado por JN em 19/4/15

IMG_2653.JPGFoi num dia de Verão que eu descobri o gosto de comer. Imagino que fosse Verão porque havia um prato com repolho cozido no centro da mesa e uma mosca cirandava em volta, tentando perfurar a tampa de rede que o cobria.

Ou talvez o meu cérebro tenha inventado essa tampa. Não sei se alguma vez houve tal coisa lá em casa.

De qualquer modo, havia um pedaço de repolho e uma mosca voava. Estava calor. E, então, apareceu o sr. Veber.

O sr. Veber era um dos homens mais interessantes da minha infância. Desde logo porque se chamava Veber (ou seria Webber?), o que me remetia para lugares distantes. Abundam por aqui os nomes estrangeiros – flamengos, escoceses, franceses –, fruto de séculos de escalas transoceânicas, mas em regra essa gente prosperou, instalando-se na cidade ou fechando-se por detrás dos portões das suas quintas.

Ademais, o sr. Veber era caiador e retelhador. A cal encantava-me: pelo cheiro, pelas brochas, pelo modo como a chuva limpava os respingos e deixava o que era pintura mesmo. E, além disso, por aquela altura também já imperava aqui aquilo a que chamamos “telha do continente”, e que dispensa retelhação.

Gosto da ideia de desmontar, limpar e montar de novo, asseado mas com história.

Portanto, naquele dia, a minha mãe propôs algo de beber ao sr. Veber. Em vez disso, ele pediu um garfo, cortou um tassalho grosso do repolho e comeu-o de olhos fechados. E, ao mastigá-lo, era como se o próprio repolho pudesse ter nuances, veios e nervos, entretons – uma abundância de pequenos sabores onde um bom palato poderia descobrir o mundo.

Isto foi há muitos anos, e eu tenho a impressão que ainda não há uma grande refeição em que não me lembre do sr. Veber a comer aquele repolho. Somos formados por coisas assim: quase nada, tantas vezes.

Diário de Notícias, Abril 2015

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Quinta-feira, 16 de Abril de 2015
publicado por JN em 16/4/15

IMG_7657.JPGNa semana passada cruzei-me com o Luís. Emigrou para a América, adolescente ainda, e só voltou quatro ou cinco vezes. Desencontrámo-nos sempre. Tem dois filhos lindos e fala um português da Califórnia, cheio de goshes e sun-of-a-guns, no estrito cumprimento dos Dez Mandamentos. Perguntou-me o que faço e mostrou-me uma foto sua, orgulhosamente aos comandos de uma retroescavadora, a demolir um project algures no Vale do São Joaquim. Voltei 35 anos no tempo. Tal como os miúdos do resto do mundo queriam ser astronautas e polícias, nós queríamos ser pedreiros, serventes ou, nos casos de maior ambição, condutores de caterpillar. Tinham-nos caído as casas em cima – os nossos heróis eram esses homens venturosos que diziam asneiras, bebiam Cinzano e brandiam talochas. Começámos por roubar-lhes betão fresco para construir garagens para os carrinhos. Uma ilha transformada num estaleiro é o cenário ideal para o exercício da imaginação. Ao fim de algum tempo, insistimos tanto que pudemos ajudá-los a encher as placas. Acabámos por aprender a traçar massa, a rebocar paredes, a assentar blocos. As noções que guardo já me safaram várias vezes. Foi bonita, a reconstrução da Terceira após o terramoto de 1980. O Governo abriu uma linha de crédito e cada um tratou do seu problema. Houve excessos, aberrações, falcatruas. Mas as pessoas partilharam materiais e força de trabalho e, em cinco anos, estava quase tudo reerguido. Já então Angra tinha sido classificada pela UNESCO. Não tenho a certeza de que ainda exista esse tipo de açoriano. Não tenho a certeza de que ainda exista esse tipo de português. Mas, desde que encontrei o Luís, que queria ser condutor de caterpillar e cumpriu o seu sonho, tenho menos medo de que a terra volte a tremer.

Diário de Notícias, Abril 2015

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Terça-feira, 14 de Abril de 2015
publicado por JN em 14/4/15

IMG_6668.JPGE, então, porque não podemos viver de outra maneira, escrevemos. E cai-nos o cabelo e apodrecem-nos os dentes, como dizia Flannery O’Connor.

E somos uns chatos. E somos maus maridos e maus filhos e maus amigos. E sentimos culpa, e sentimo-nos indignos de estima, e continuamos, mesmo assim, a não responder quando falam connosco.

E não telefonamos nos anos, nem aparecemos nos churrascos, nem vamos ao café. E, se vamos, a única coisa de que falamos é disso: do livro. E tudo aquilo sobre que se conversa pode servir ao livro, caso contrário não nos importa.

E somos os maiores quando um parágrafo nos sai bem, e ficamos de rastos quando não encontramos um verbo. E sabemos que tem de ser mesmo assim, porque se não for o romance fica uma merda. Mas sentimos culpa na mesma.

E não pagamos as contas, e esquecemo-nos de pedir a garrafa do gás, e calçamos meias de pares diferentes. E de repente queremos fumar dois maços de cigarros e beber meia garrafa de uísque, sozinhos no jardim, a olhar para a noite e a chorar.

E temos de fazer um esforço para mudar de roupa, e não cortamos as unhas, e pomos lembretes no telemóvel para tomar os antibióticos e dar a comida ao cão a horas. E conduzimos depressa, e arranjamos chatices com as Finanças, e é uma sorte chegarmos vivos ao fim do dia, e às vezes acontece até não chegarmos.

E queremos desistir, e queremos ter um trabalho braçal, e queremos ser amigos. E queremos ser maridos e pais e atenciosos. E, quando ainda não perdemos de vez a esperança, escrevemos coisas como esta, para nos justificarmos.

E exageramos imenso. Mas continuamos escrevendo.

Entreguei esta madrugada o novo livro à editora. É o meu primeiro romance escrito no campo. Trabalhei nele durante mais de três anos, como um louco, e agora acho que precisava só de mais um dia.

Diário de Notícias, Abril 2015

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Sexta-feira, 10 de Abril de 2015
publicado por JN em 10/4/15

fotografia.JPGUm dia destes, o meu sobrinho pediu-me para lhe fazer o nó a uma gravata. Pôs o seu ar mais convencido e esticou-me a gravatinha azul da filarmónica, com um trejeito negligée que Miguel Ângelo podia ter usado ao apresentar o tecto da capela ao papa.

O Gaspar é tudo o que eu gostaria de ter sido aos nove anos: rufia, mulherengo, adorável. Ter nascido com o cabelo loiro e o rosto perfeito ajudou. Mas o melhor é mesmo dele. As raparigas vêm recebê-lo ao portão da escola. Os rapazes reúnem as bicicletas em volta da sua.

Está a começar a aprender trompa de harmonia, o Gaspar. Não vai ser solista, e ainda bem: sempre permite aos outros equilibrarem um pouco os pratos da balança. Até lá, é o porta-estandarte. Faz um ar presunçoso e marcha à frente dos músicos, com a Raquel da Teresinha ao lado, loira também.

A ilha Terceira tem 24 bandas filarmónicas para menos de 60 mil habitantes. Acompanham procissões, cortejos e até touradas. Há actuações de trazer por casa e outras cheias de pompa. Quem assista ao dia do desfile das Sanjoaninas sabe que podem atingir algum virtuosismo.

Há um ano ou dois, chegou a ser lançada uma caderneta de cromos com os músicos da ilha. Foi um sucesso e não me surpreende: ouço-os tocar, alternando melodias lúgubres e exuberantes, como se contassem da própria vida, e parecem-me sempre o último estertor de uma coisa antiga e boa – um resquício de tudo o que na história da espécie houve um dia de brio, rectidão e generosidade.

Por mim, não me importo de ser o homem que faz os nós às gravatas. Como o meu avô era. Há uma mundividência no homem que faz os nós às gravatas da vizinhança. Mas é consolo apenas. O que eu queria era ter desfilado em frente à filarmónica. E que as raparigas me viessem buscar ao portão.

* Diário de Notícias, Março 2015

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Quarta-feira, 8 de Abril de 2015
publicado por JN em 8/4/15

IMG_5637.JPGO Ti José Nogueira era uma das minhas personalidades favoritas. Sabia tudo sobre árvores, e o modo como brilhavam os seus olhos pequeninos mostrava que sabia muito sobre pessoas também.

O Luciano costuma contar que certa vez, ao roçar a quinta da Fonte Faneca, andou dias às voltas com uma queimada. Nunca conseguiu atear a fogueira, porque estava tudo verde e húmido. Foi pedir ajuda ao Ti José Nogueira e este veio no dia mais mal-encarado que encontrou, com dois fósforos na mão. Olhou para o firmamento, mediu o vento, a posição das nuvens e a alma do anfitrião, e inclinou-se sobre a ramagem.

Ateou uma queimada linda e ainda poupou um fósforo.

O Ti José Nogueira plantou-me um castanheiro, um dia. De vez em quando vinha vê-lo. E podou duas tangerineiras ao meu pai de um tal modo que hoje temos tangerinas para nós, para os melros e para algum vizinho que se engane no portão.

Às vezes eu dava-lhe boleia, de regresso do cemitério. Visitava sempre a campa da mulher. Cheguei a deixá-lo na Feira do Gado, onde ainda se negoceia em contos de réis. Encontrava-o com frequência a conversar com o Vieira, na cozinha deste, quando ia lá buscar sementes.

Conversavam muito, naquela amizade triste dos homens viúvos.

O Ti José Nogueira enterrou-se domingo. Perguntei o horário do funeral na venda e fui despedir-me. Leu-se do Êxodo, de Primeira a Coríntios e do Evangelho Segundo São João. A igreja estava cheia e eu era o único que não sabia quando levantar, sentar e cantar.

Do Ti José Nogueira não rezará a História. Quem mudou o mundo não foram os camponeses honestos, que pagaram os seus impostos e encheram a igreja da freguesia no dia em que foram a enterrar. Dos aventureiros, dos inventores e dos facínoras – deles, sim, reza a História.

Por isso se inventou a literatura.

* Diário de Notícias, Março 2015

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Joel Neto


Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974, e vive entre a freguesia rural da Terra Chã, na ilha Terceira, e a cidade de Lisboa. Publicou, entre outros, “O Terceiro Servo” (romance, 2000), “O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Banda Sonora Para Um Regresso a Casa” (crónicas, 2011) e “Os Sítios Sem Resposta” (romance, 2012). Está traduzido, editado e/ou representado em antologias em países como Inglaterra, Polónia, Brasil, Espanha e Itália. Jornalista de origem, trabalhou na imprensa, na televisão e na rádio, como repórter, editor, autor de conteúdos e apresentador. Hoje, dedica-se sobretudo à crónica, ao diário e à crítica, que desenvolve a par da escrita de ficção. (saber mais)
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