Visitamos os últimos amigos antes do regresso, e os comentários são os mesmos do primeiro dia: estamos com um ar magnífico, sereno, saudável. Eu passei o ano a trabalhar quase ininterruptamente durante catorze horas por dia, às vezes quinze ou dezasseis. A Catarina anda desfeita da coluna. Aparentemente, mantemos um ar tranquilíssimo.
Não é apenas cortesia. As pessoas também vêem em nós aquilo que querem ver. Acham que estamos com óptimo aspecto porque querem acreditar nisso. Porque precisam de acreditar que existe, apesar de tudo, uma saída airosa para isto – para este sufoco, para esta chuva, para esta crise. Nós gostamos de poder servi-los.
A verdade é que a velha casa dos Dois Caminhos não tardou a tornar-se um frenesi de livros, traduções, crónicas de jornal. Há refeições para fazer, lixo para mudar, burocracias. A horta deste Verão rebentou de monda. A mais simples ida ao médico tornou-se um terramoto na rotina. Até para que o Melville pudesse manter a dose ideal de exercício diário foi preciso, a dada altura, comprar uma passadeira eléctrica.
Os vizinhos acham que somos maluquinhos. Provavelmente, somos mesmo.
Mas este domingo, quando pousarmos nas Lajes e percorrermos a Planície Central em direcção a Angra, por entre as beladonas, e largarmos as malas no quarto que durante anos pertenceu a Maria do Carmo e José Guilherme e ouvirmos o apito da carrinha do peixe, para cima e para baixo, e aspirarmos o ar da Terra Chã, aquela mistura inocente de leite morno, erva húmida e bosta de vaca, também nós (sim, também nós) nos sentiremos impregnados dele.
Não estaremos a mentir-nos a nós próprios.
Diário de Notícias, Novembro 2014
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